Descubre cómo la música y la literatura nos conectan con el mar

El océano como un espacio político de placer

Thayná B. Soares

Ao longo da história, o mar exerceu papel fundamental para a humanidade. Ora motivo de temor, ora de admiração, tal figura emblemática sempre foi vítima da ação do homem¹. No mar está contida toda a história da humanidade e diversas são as mitologias e crenças que o têm como protagonista. Prandi (2001) reuniu as histórias dos orixás em uma única obra, dentre as quais destaco a seguinte:

Logo no princípio do mundo, Iemanjá já teve motivos para desgostar da humanidade. Pois desde cedo os homens e as mulheres jogavam no mar tudo o que a eles não servia. Os seres humanos sujavam suas águas com lixo, com tudo o que não mais prestava, velho ou estragado.
(PRANDI, 2001 p. 392)

            Nessa história, temosa orixá Iemanjáindignada com o desprezo dos seres humanos em relação ao mar. Todavia, atento a um fato: o homem² jogava ao mar tudo que não mais lhe servia, tudo que era lixo.

Foi pelo mar e através deste que ocorreram as “grandes navegações” nas quais os povos europeus puderam exercer seu poderio e “conquistar” o mundo (de acordo com a história oficial). O Brasil, especificamente, passou por um processo de colonização extremamente cruel e desumano cujo algoz foi Portugal.

Os navios negreiros, como são conhecidas as embarcações responsáveis por trazer os negros escravizados ao Brasil, apresentavam condições insalubres e, com isso, muitos dos escravizados não chegavam ao solo brasileiro, pois morriam durante a travessia. Em estudos recentes, Laurentino Gomes (2019) contabiliza um total de 1 milhão e 800 mil corpos negros jogados ao mar – o  que inclusive mudou o hábito dos tubarões, que seguiam os navios em busca de alimento – ou seja, os negros eram descartados como lixo, assim como na história da deusa iorubá citada anteriormente. Porém, o que os portugueses não sabiam, era que, no mar, habitava a grandiosa Iemanjá, senhora de todas as cabeças cuja cor de pele era a mesmíssima dos africanos jogados ao mar. Hoje, os negros descendentes de africanos podem facilmente cantar a seguinte canção, do grupo Billos Caracas Boys:

Playa, brisa y mar
es lo más bello de la tierra mía
Tierra tropical
con un ambiente lleno de alegría
Playa, brisa y mar
es lo más bello de la tierra mía
Tierra tropical
con un ambiente lleno de alegría
O cartão postal brasileiro vendido internacionalmente é sempre composto de praias e mulheres – especialmente mulheres negras, de forma que podemos continuar cantando:
Ay! Todas sus mujeres son hermosas
muy bonitas y graciosas
que se mueren por querer amar
Son lindas morenas
que enloquecen corazones
tan sinceros que no saben olvidar

Nesse trecho específico, temos o uso do termo “morena”. Este vem sendo problematizado por estudiosos e militantes do movimento negro que estudam e combatem o racismo. Tal palavra sempre foi usada com o intuito de suavizar ou mascarar o tom de pele dos negros e negras brasileiros. É comum ouvir “você não é negra, é moreninha” e incontáveis são os assédios nas ruas que sempre “apelidam” as mulheres negras de “morenas”, ou “mulher da cor do pecado”, etc. Nesse ponto, voltemos ao cartão postal brasileiro: quando se pensa em Brasil, a imagem internacional corresponde à praia, Carnaval e mulheres seminuas. Sendo estas, na maioria das vezes, negras. Tal hiperssexualização não é à toa: o tratamento dado às mulheres negras brasileiras beira as condições de um navio negreiro. E sim, as mulheres negras “se mueren por querer amar”, mas vivenciam uma solidão tão profunda quanto o mar.

No entanto, no dia dois de fevereiro, em que celebramos Iemanjá e todas as suas bonanças, podemos encontrar milhares de negras que ressignificaram os elementos principais desse texto: o mar, as praias e a sua própria existência em uma sociedade estruturalmente racista. Essas mulheres negras que vestem branco e saldam Iemanjá com flores e preces entenderam o mar e sua dona em sua mais pura essência: como entidades que devem ser plenamente cultuadas e cuidadas. O oceano, para elas, é lugar de paz, regozijo, descanso e prazer.

Sem suas praias, o Brasil fica descaracterizado e isso é um fato para todo e qualquer brasileiro. Essa unanimidade não ocorre quando o tópico são as mulheres negras.  A imensidão dessas não é vista como uma qualidade e sim um problema, e, da relação com elas, espera-se um afogamento iminente. Mas é preciso valorizá-las para enxergar a verdadeira e maior beleza de nossa terra tropical: a luta e resistência de nosso povo, que só é possível por e pelas mulheres negras.

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